Em um primeiro momento, a resposta é não. A Lei n.º 7.716/1986, que criminaliza preconceitos por raça ou
cor, garante a punição na seguinte forma: “Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os
crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” (original sem grifos).
Observa-se acima que, no Brasil, somente há punição se os motivos ofensivos forem
por “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Então, se um doente,
portador de deficiência, homossexual, anão, pobre, obeso etc., for vítima de
ofensa discriminatória, não haverá punição, de acordo com a redação literal da legislação.
O
artigo 140 do Código Penal, de igual modo, ao criminalizar a injúria "preconceituosa", define também algumas
formas de punição, não protegendo todas as pessoas. Note:
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. § 1º - O juiz pode deixar de
aplicar a pena: I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou
diretamente a injúria; II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra
injúria. § 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por
sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes: Pena - detenção,
de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. § 3o Se
a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou
portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa. (original sem grifos).
Embora
o ordenamento jurídico brasileiro tenha essas implicações literais, todos os preconceitos devem ser combatidos. E a
própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 5º, inciso XLI, determina que “a lei punirá
qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;”, ou
seja, a legislação brasileira deve punir preconceitos e não pode ser um motivo
para criar mais preconceitos e discriminações. A própria unidade e harmonia do
sistema de direitos fundamentais constitucional brasileiro exige que todas as
pessoas sejam respeitadas.
Além
disso, está descrito na Constituição, em seu
artigo 3º, inciso IV, que todas as pessoas devem ser promovidas, sem qualquer tipo de discriminação. Tal texto é
tão importante que foi positivado como objetivo fundamental do país, devendo ser
observado e cumprido, junto com as leis restritivas de punição. Eis o texto constitucional:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (original sem grifos).
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (original sem grifos).
Mesmo
o artigo 5º, inciso II, da Constituição determinando
que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei;” e o artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição definindo que
“não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação
legal;”, não é razoável e proporcional que as leis infraconstitucionais citadas
não promovam o bem de todos. Em outras palavras, embora as leis infraconstitucionais aludidas estejam
seguindo em suas redações esses dois incisos do artigo 5º, não é razoável que o
Estado não promova o bem de todos.
As
leis infraconstitucionais, de fato, estão prevendo crimes específicos,
entretanto, só isso não basta. Se um desses dois artigos constitucionais deve
prevalecer, em uma disputa de aplicabilidade do sistema, no caso específico,
que prevaleça o artigo 3º, e seu inciso IV, por ser um objetivo fundamental do
Estado, em detrimento dos incisos citados do artigo 5º, e por ser específico em
relação a política nacional de combate aos preconceitos e às discriminações no
Brasil. Hermeneuticamente, esse deve ser o entendimento correto, por ser mais
razoável e por revelar a essência do Estado Democrático de Direito. A promoção do bem de todos não pode apontar
exceções de exclusão de pessoas, sem justo motivo, ainda que o ordenamento
jurídico, aparentemente ou tecnicamente, esteja sendo cumprido.
Referência:
BAPTISTA, Conrado
Luciano. O Debate Nacional do Preconceito e da
Discriminação: Um Contributo à Discussão dos Objetivos Fundamentais do Estado
Brasileiro. São Paulo: Clube de Autores, 2013.
Autor:
Conrado Luciano Baptista
Foto:
Prefeitura Municipal de Nova Lima/MG