sexta-feira, 24 de abril de 2015

Todas as formas de preconceito e discriminação no Brasil são passíveis de punição?




Em um primeiro momento, a resposta é não. A Lei n.º 7.716/1986, que criminaliza preconceitos por raça ou cor, garante a punição na seguinte forma:Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” (original sem grifos).
Observa-se acima que, no Brasil, somente há punição se os motivos ofensivos forem por “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Então, se um doente, portador de deficiência, homossexual, anão, pobre, obeso etc., for vítima de ofensa discriminatória, não haverá punição, de acordo com a redação literal da legislação.
O artigo 140 do Código Penal, de igual modo, ao criminalizar a injúria "preconceituosa", define também algumas formas de punição, não protegendo todas as pessoas. Note:

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. § 1º - O juiz pode deixar de aplicar a pena: I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria. § 2º - Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. § 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena - reclusão de um a três anos e multa. (original sem grifos).

Embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha essas implicações literais, todos os preconceitos devem ser combatidos. E a própria Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 5º, inciso XLI, determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;”, ou seja, a legislação brasileira deve punir preconceitos e não pode ser um motivo para criar mais preconceitos e discriminações. A própria unidade e harmonia do sistema de direitos fundamentais constitucional brasileiro exige que todas as pessoas sejam respeitadas.
Além disso, está descrito na Constituição, em seu artigo 3º, inciso IV, que todas as pessoas devem ser promovidas, sem qualquer tipo de discriminação. Tal texto é tão importante que foi positivado como objetivo fundamental do país, devendo ser observado e cumprido, junto com as leis restritivas de punição. Eis o texto constitucional:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (original sem grifos).

Mesmo o artigo 5º, inciso II, da Constituição determinando que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;” e o artigo 5º, inciso XXXIX da Constituição definindo que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;”, não é razoável e proporcional que as leis infraconstitucionais citadas não promovam o bem de todos. Em outras palavras, embora as leis infraconstitucionais aludidas estejam seguindo em suas redações esses dois incisos do artigo 5º, não é razoável que o Estado não promova o bem de todos.
As leis infraconstitucionais, de fato, estão prevendo crimes específicos, entretanto, só isso não basta. Se um desses dois artigos constitucionais deve prevalecer, em uma disputa de aplicabilidade do sistema, no caso específico, que prevaleça o artigo 3º, e seu inciso IV, por ser um objetivo fundamental do Estado, em detrimento dos incisos citados do artigo 5º, e por ser específico em relação a política nacional de combate aos preconceitos e às discriminações no Brasil. Hermeneuticamente, esse deve ser o entendimento correto, por ser mais razoável e por revelar a essência do Estado Democrático de Direito. A promoção do bem de todos não pode apontar exceções de exclusão de pessoas, sem justo motivo, ainda que o ordenamento jurídico, aparentemente ou tecnicamente, esteja sendo cumprido.


Referência:

BAPTISTA, Conrado Luciano. O Debate Nacional do Preconceito e da Discriminação: Um Contributo à Discussão dos Objetivos Fundamentais do Estado Brasileiro. São Paulo: Clube de Autores, 2013.


Autor: Conrado Luciano Baptista
Foto: Prefeitura Municipal de Nova Lima/MG