Entrou em vigor no dia 10 de março de 2015 a Lei 13.104/2015,
que altera o Código Penal, acrescentando nova qualificadora ao crime de
homicídio, e inserindo a nova modalidade no rol dos crimes hediondos.
A Lei acrescentou o inciso VI ao §2º do art. 121
CP definindo como homicídio qualificado aquele praticado “contra a mulher por
razões da condição do sexo feminino”. Definiu ainda em seu §2º-A que
“considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve
(I) violência doméstica e familiar; (II) menosprezo ou discriminação à condição
de mulher”.
Acerca dessa primeira alteração, impõe-se algumas
observações. O que se entende então por feminicídio?
O conceito de “feminicídio” surgiu na década de
70, para dar visibilidade à discriminação, opressão e desigualdade sistemática
contra as mulheres, que, em sua forma mais extrema, culmina na morte. [1] Em termos
legais, trata-se do homicídio doloso praticado contra a mulher menosprezando
sua dignidade enquanto pessoa do sexo feminino.
A violência de gênero representa, nas palavras de
Maria Amélia Teles e Mônica de Melo, “uma relação de poder de dominação do
homem e de submissão da mulher”.[2] Os papéis
sociais atribuídos aos homens e mulheres ao longo do tempo faz com que não haja
verdadeira interdependência, mas hierarquia autoritária, o que cria condições
para que o homem se sinta legitimado a fazer uso da violência.[3]
Ponto bastante controvertido diz respeito à
possibilidade de aplicação da Lei 13.104/2015 para o transexual ou para o
travesti. O caso mais delicado é certamente o do transexual – aquele que possui
o gênero físico diferente do psíquico – que realizou a cirurgia de transgenitalização
(mudança de sexo). Parcela da doutrina entende pela impossibilidade de o transexual
ser vítima do crime de feminicídio em razão de a Lei não ter previsto
expressamente essa possibilidade, o que agravaria a situação do réu sem
obediência ao princípio da estrita legalidade. No entanto, defende a aplicação
da Lei Maria da Penha para essas pessoas, já que se trata de medida de
proteção, que não visa ao agravamento da situação do réu.
Destaca-se nesse sentido a decisão da 1ª Vara
Criminal da Comarca de Anápolis, no processo 201103873908 – TJGO, que entendeu
pela aplicação da Lei Maria da Penha para transexual masculino.
É importante também fazer a diferenciação entre
os conceitos de feminicídio e femicídio. De acordo com o professor e juiz
federal Márcio André Lopes Cavalcante, “Femicídio significa praticar homicídio
contra a mulher (matar a mulher); feminicídio significa praticar homicídio
contra a mulher por ‘razões da condição de sexo feminino’ (por razões de
gênero)”. [4]Assim, para que haja o
feminicídio não basta que a vítima seja mulher, o homicídio deve ter se dado em
razão da especial condição de sexo feminino.
Passados os esclarecimentos, impõe-se observar que
a referida Lei trouxe ainda uma causa de aumento da pena de 1/3 até a metade
caso seja o crime (a) cometido durante a gestação ou nos três meses posteriores
ao parto; (b) contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 ou com deficiência;
(c) se o crime for cometido na presença de descendente ou ascendente da vítima.
Em sucinta interpretação, temos que a mens legis
nos dois primeiros incisos foi a de reprovar a conduta nos casos em que a
mulher se encontra mais fragilizada e quando a criança mais necessita dos
cuidados maternos, enquanto no terceiro caso – na presença de ascendentes ou
descendentes da vítima – a reprovação se dá em razão do intenso sofrimento
ocasionado a essas pessoas, bem como pela grande possibilidade de futuros
transtornos psicológicos.
Deve-se notar que o juiz, ao lançar mão dessas
causas de aumento não poderá também utilizá-las a título de agravantes
genéricas, previstas no art. 61, II, CP, sob pena de incorrer em bis in idem, prática
inadmissível no Direito Penal pátrio. Além disso, para que sejam aplicadas,
deve-se restar caracterizado o dolo do agente em atuar nessas circunstâncias,
ou seja, ele deveria conhecer previamente as situações caracterizadoras do
aumento da pena e ainda assim querer praticar o crime dessa forma.
A última alteração trazida pela Lei foi a
inserção do feminicídio no rol dos crimes hediondos, o que traz as seguintes
consequências: não admissão de fiança, anistia, graça ou indulto; prazo
diferenciado para a obtenção de livramento condicional e sua proibição caso
seja o agente reincidente específico; prazo diferenciado para a progressão de
regime, dentre outros.
Como a referida Lei é mais gravosa (novatio legis
in pejus), sua aplicação apenas se dá a partir de sua entrada em vigor, não se
aplicando de forma retroativa. Assim, apenas os homicídios dolosos praticados
com violência de gênero a partir de 10/03/2015 terão aplicação da Lei
13.104/2015.
O primeiro caso em que se registrou a ocorrência
desse crime se deu em Minas Gerais, em menos de um dia após a sanção da Lei.
Uma dona de casa foi esfaqueada pelo ex-marido enquanto dormia, o homem foi
indiciado pela prática de feminicídio tentado.
Recentemente outro caso ganhou bastante destaque:
a morte da uma dançaria de funk – Amanda Bueno. De acordo com o portal de
notícias “G1”, Milton Severiano Vieira, conhecido como “Miltinho da Van”, foi
indiciado pelo crime de feminicídio após ter confessado matar sua noiva Amanda.
Como se percebe, em ambos os casos havia um
contexto de violência doméstica, então o questionamento que aqui se faz é: a
Lei Maria da Penha não existe justamente para esse tipo de crime? A Lei
11.340/06 (Lei Maria da Penha) traz regras processuais para o tratamento de
crimes em que haja a ocorrência de violência doméstica e familiar, no entanto,
não tipifica qualquer conduta como crime. Em outras palavras, a referida lei traz
medidas de proteção para vítimas em contexto de violência doméstica e
procedimentos diferenciados, mas não inova na existência de novos crimes.
A título de esclarecimento, entende-se por
violência doméstica e familiar contra a mulher “qualquer ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial” [5] no convívio
familiar ou relação íntima de afeto, independentemente de coabitação.
Assim, inegável é que as duas leis caminharão
juntas, devendo ser aplicado o procedimento e as medidas protetivas da Lei
Maria da Penha, sempre que possível, ao crime de feminicídio, notadamente
quando na modalidade tentada.
Por fim, releva destacar que já em 2013 a
Comissão sobre a situação da mulher, da ONU, havia recomendado aos Estados um
reforço da legislação interna a fim de reprimir, prevenir e investigar de forma
mais significativa os crimes violentos praticados contra mulheres em razão do
seu gênero, o que apenas foi feito em 2015, com a referida Lei.
Segundo o Mapa da Violência (2012), o Brasil
ocupa o 7º Lugar, dentre 84 países, com a maior taxa de femicídios, sendo 68,8%
dessas mortes ocorridas em âmbito doméstico. De acordo com o Instituto avante
Brasil, uma mulher é morta a cada hora no Brasil, sendo quase a metade desses
homicídios praticados em contexto de violência doméstica e familiar.
Autor: Vanessa Franco
Fontes:
[1] Meniccuri, Eleonora. Ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República.
[3]
Bianchini, Alice. GOMES, Luiz Flávio. Feminicídio: Entenda as questões
controvertidas da Lei 13.104/2015.
[4]
Cavalcante, André Lopes. Comentários ao
tipo penal do feminicídio (art. 121, §2º, VI do CP).
[5]
Art. 5º da Lei 11.340/06.